O Cálice de San Markan 01

Capitulo 01

Para o observador ocasional era apenas um templo abandonado há muito construído para uma divindade desconhecida e esquecida. Foi construído no sopé de um paredão de rocha vertical. Uma das diversas faces da gigantesca cordilheira de picos cobertos de neve que atravessa o Novo Mundo de norte a sul: a Cordilheira do Sol.

As tribos jaquaris da região não se interessavam pelas ruinas, até mesmo a evitavam, mas ela sempre atraia aqueles corajosos o suficiente para se arriscarem dentro daquela construção castigada pelas rochas que se precipitavam do paredão. Alguns destes corajosos apareceram em frente às ruinas num dia morno de verão.

Allen olhava para as ruinas do templo tentando controlar a ansiedade. Durante muitos meses ele e seus companheiros haviam vagado pelo continente em busca do Cálice de San Markan; um artefato capaz de curar qualquer tipo de doença, natural ou mágica. Sua aldeia sofria com uma praga que diziam ter sido lançada por um bruxo que foi maltratado pelos moradores locais. Allen já havia perdido os pais e faria qualquer coisa para evitar que sua irmã caçula, única parenta viva, tivesse o mesmo destino.

Todos os seus companheiros haviam perdido algo para a maldita praga; Donna, a meio-elfa ladina, perdera o avô e agora estava só no mundo; Bono, o anão clérigo, havia perdido sua fé quando suas preces não trouxeram a cura para os moribundos; Eulik, o mago elfo, corria contra o tempo para salvar a esposa. Após tanto tempo, tantas pistas falsas, Allen sentia que sua busca estava no fim; seus companheiros também tinham a mesma sensação.

O templo possuía uma configuração clássica, Eulik havia explicado; uma nave de mais ou menos duzentos metros; capelas laterais, um transepto antes do presbitério que levava ao altar; consistório e sacristia. Aqueles nomes nadam significavam para Allen e os outros; o que importava era que vasculharam até mesmo as ruinas das torres sineiras e nada.

- Parece que só perdemos tempo – Bono resmungou.

Allen estava frustrado. Bono e o mago estavam apenas cansados e queriam ir embora. Estavam parados nos degraus do presbitério e apenas a ladina parecia ainda ter alguma curiosidade em relação ao velho templo.

Donna observava atentamente o gigantesco altar atrás deles; ela já havia percebido que ele estava fixado na própria rocha da montanha e olhava atentamente cada detalhe. E a realidade era que muito pouco sobrara para ser visto.

O nicho central estava vazio; tudo o que sobrara da imagem da divindade foram os pés; pés de mulher, a ladina concluiu; uma deusa então. Aqui e ali entorno do nicho havia restos de entalhes de crianças com asas. Donna olhou para eles por um momento e voltou, novamente, sua atenção para os pés da divindade.

- É melhor partimos, pois o sol já começa a caminhar para seu ocaso – Eulik conclamou.

- Esse lugar já deu o que tinha que dar – bufou o anão jogando a imensa maça de guerra sobre os ombros.

- Vamos Donna! – Allen chamou.

- Deem-me mais alguns minutos rapazes; acho que descobri algo...

A ladina olhava com extremo interesse para aqueles pés desbotados e carcomidos pela ação do tempo. Ela reconhecia nos traços delicados e absurdamente realistas deles o trabalho de um gênio escultor. Outrora ricamente adornados agora exibiam o mármore branco. A meio-elfa olhava curiosa para a unha do dedão do pé direito. Nove unhas estavam brancas como o mármore, mas ela ainda exibia o brilhante esmalte rosa que um dia ornamentou todas.

- O que descobriu? – Allen se aproximou.

- O que acha? – ela mostrou a unha – Tá na cara que é algum tipo de dispositivo.

- Pode ser uma armadilha ou...

O guerreiro não terminou porque Bono avançou e apertou a unha para espanto de todos.

- Se não tentarmos nunca saberemos - foram as suas palavras.

A unha estalou e se moveu como um botão. O silencio imperou por alguns segundos então todo o altar estalou e começou a se mover.

Nossos heróis recuaram assustados. Dois ou três temiam que todo o templo viesse abaixo, mas se mantiveram no presbitério em clima de expectativa. Logo, tudo parou; os estalos, o movimento. O altar havia avançado na direção do presbitério cerca de trinta centímetros e agora tinha voltado ao seu estado inercial.

- Tem uma passagem atrás – a ladina anunciou – Tá escuro, mas é possível ver que é uma escadaria...

- Consegue ver o final? – Allen, retirando a espada, perguntou.

- Não. Ela sobe até perder-se de vista.

Só havia um jeito de descobrir até onde a escada ia; os aventureiros pegaram suas coisas, prepararam suas armas e entraram, um a um, no corredor. Como sempre Donna ia à frente; o clérigo vinha logo atrás seguido pelo elfo que tinha as costas protegidas pelo guerreiro. Conforme subiam eles iam mergulhando na escuridão.

Eles avançavam com calma; mãos na parede e pés tateando em busca dos degraus escavados na rocha. Eulik pediu para que Donna pegasse o punhal e o erguesse. Ela obedeceu e ele recitou uma pequena ladainha. Uma tênue luz, branca e fria surgiu na ponta do punhal iluminando o caminho. Ela não iluminava muito, mas dava-lhes o conforto de verem onde estavam.

A escada serpenteava cada vez mais para cima e para dentro da montanha. Quando começaram a achar que nunca terminariam de subir uma câmara se descortinou na frente deles. Não era muito maior que as capelas do templo abandonado deixado lá embaixo; pelo menos estavam em terreno plano depois de horas de subida.

- Parece que as escadas terminam aqui – Donna olhou em volta.

Ou não, porque havia uma porta de madeira que atraia os olhares de todos. Estava visivelmente podre; implacavelmente corroída pela ação do tempo. Bono se adiantou; só havia uma forma de descobrir o que havia do outro lado.

A porta da catacumba se despedaçou com a força do golpe do anão revelando uma escadaria que descia até se perder na escuridão. O elfo executou uma magia que iluminou todo o salão revelando seu tamanho imenso.

- Que ótimo! Mais escadas – Bono resmungou.

- É grande, né? – Donna olhou através da porta – pra que será que servia?

- Talvez, para algum tipo de cerimônia religiosa – o clérigo anão respondeu pensativo.

- Certo pessoal, vamos explorar! – o guerreiro passou a frente e conclamou.

Minutos depois eles já estavam no fim da escada. Visto a partir de seu piso o salão parecia maior ainda, gigantesco até. Eulik conjecturou que os construtores deviam ter adaptado uma caverna natural pré-existente apenas ocultando a rocha com argamassa; isso só tornava mais impressionante o trabalho dos pedreiros. Todos estavam impressionados, menos Bono; o anão estava visivelmente incomodado.

- O que houve? – o mago perguntou.

- Algo não está certo – o clérigo anão murmurou – posso sentir em meus ossos...

Para corroborar os pressentimentos de Bono um tremor percorreu toda a câmara. Lascas se soltaram das rochas e o chão vibrou.

- Um terremoto?! – Donna interrogou protegendo a cabeça.

Ninguém respondeu. Toda a atenção de Allen estava concentrada na parede logo à frente. Diversas rachaduras surgiram e se alastraram por toda sua extensão. Com a perda da sua unidade ela veio abaixo numa avalanche de pedras, argamassa e poeira; assim como a escada que os trouxe até ali.

E então, um dragão ergueu-se por sobre a pilha de escombros e abriu a bocarra ameaçadora. Era um dragão jovem, vermelho, cuspidor de fogo; extremamente perigoso e mortal; um devorador de homens.


Continua em 07 dias...

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